sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Pequenos Contos - Solidão

Chegou em casa cansada, como no resto da semana. Jogou a bolsa sobre o sofá. Na poltrona ao lado o gato espreguiçava-se, levantando lentamente, ronronando. O felino pulou suavemente e enroscou-se por entre suas pernas, sua maneira de dizer bem vinda.
Lembrou que não havia passado no mercado e que provavelmente a geladeira estaria vazia, cena que a fez imediatamente pensar no barulho de grilos durante a madrugada.
Tirou os sapatos, sentindo o piso frio. Um banho quente era tudo o que precisava, uma toalha macia e um pijama confortável. Tentou ascender a luz do banheiro, mas não obteve resposta. Lembrou de umas velas aromáticas que tinha comprado em uma lojinha de produtos exotéricos. Não tinha pensado em usá-las assim, mas, vá lá, de outra forma não iria usar, pelo menos por enquanto. Ascendeu as velas e ligou o som. Enquanto enchia a banheira olhou-se no espelho. O efeito da luz das velas dava uma coloração diferente ao seu rosto. Ficou ali, se olhando, procurando não sabia bem o que. Sorriu, fez careta, perguntou como estava. Respondeu para si mesma que bem, com um sorriso amarelo. Nova expressão, agora de interrogação. Sim, você esta ficando louca, pensou.
O gato ronronava de novo aos seus pés. Abaixou-se e perguntou se ele achava que ela estava ficando louca. Ela mesma respondeu que sim, afinal estava no meio do banheiro, semi-nua, à luz de velas conversando com seu gato, logo após ter estabelecido uma franca conversa com o espelho.
Definitivamente preciso de alguém para conversar, ou de um bom vinho prá dormir melhor.
Foi até a cozinha, mas não encontrou nada. Lembrou que a última garrafa há muito se perdeu, numa noite em que não se sentia tão só.
Voltou ao banheiro, entrou na banheira quente e fechou os olhos. Começou a tocar uma música que há muito não escutava, mas que a fazia sentir vontade de chorar sempre, e sabia bem porque. Madeleine Peyroux entoava nos seus ouvidos, de forma doce, melancólica, a melodia que a embalou naqueles breves momentos em que uma felicidade doída se misturou com uma tristeza cortante.
"Dance me to your beauty with a burning violin
Dance me through the panic 'til I'm gathered safely in

Lift me like an olive branch and be my homeward dove

Dance me to the end of love
Dance me to the end of love

Let me see your beauty when the witnesses are gone
Let me feel you moving like they do in Babylon
Show me slowly what I only know the limits of

Dance me to the end of love
Dance me to the end of love..."

Haviam dançado no meio da sala, na noite em que ele partiu. Sabia que era a última vez que o veria, mas ainda assim nutria uma falsa esperança, um desejo quase ingênuo de que no último momento ele diria que ficaria, que ela era mais importante que qualquer cargo, em qualquer multinacional, em qualquer país, em qualquer tempo.
A música terminou, despertando-a para uma escuridão quase total, em que as velas definhavam e a água já esfriava.
Colocou o pijama e foi até a cozinha. Apesar do almoço ter sido o último contato com qualquer coisa que lembrasse uma refeição, não sentia fome. Fez um chá e, apenas por amor ao organismo, pegou algumas bolachas que sua vizinha, uma mãe-esposa-rainha-do- lar-impecável, havia feito a gentileza de dar-lhe, com aquele inconfundível sorriso em que um misto de pena e compaixão a deixavam furiosa, frisando que ela mesma tinha feito, uma receita da família, herança de sua mãe.
Aconchegou-se por entre os travesseiros e o edredon. O gato já se aninhava nos pés da cama. Chegou a pegar o livro que havia começado a ler ainda na outra semana, mas não conseguiu chegar até o fim do capítulo. O sono implacável era como um alento à sua solidão. Dormiu o sono dos justos, diria sua mãe. Mas a ausência de sonhos determinava que aquele não era o sono dos justos, mas de alguém que ao ter, algum dia, se dado ao luxo de sonhar acordada, via agora a vida passar em preto e branco, desejando que a música nunca tivesse terminado de tocar.

5 comentários:

Bípede Falante disse...

Também consigo entrar na sua pele e sentir seu pulso e seu ritmo e sua melancolia.

Claudia Bertholdo disse...

Acho que concordamos que escrever é isso, afinal.

Silvestre Gavinha disse...

Delicioso conto.
No início pensei que talvez um dia você tivesse me visto chegar em casa há uns tempos atrás quando Sophia ainda me esperava enrolada no sofá para pular em cima de mim ronronando.
Quando chegou na banheira caí na real. E embora ouça Madeleine cantando esta mesma canção não tenho a memória da dança apertada do últimp momento.
Esse ritmo embala deliciosamente os momentos de solidão e ela é uma doce companheira.
Escrever é isso e ler também. Obrigada meninas.
Marie

Anna Oh! disse...

... acho q já me senti assim... sem banheira, com um pouco mais de vinho, mas o post me soou meio familiar; como se essas sensações fossem tão compreensíveis qto as palavras q vc usou. Há muita beleza nessa melancolia.

Bjus

Claudia Bertholdo disse...

Obrigada meninas!
Adoro ver vcs por aqui!
bjos

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