Faltavam exatamente sete horas para a cerimônia. Caminhava devagar, chutando uma pedra ali outra aqui, como se estivesse sem rumo, ainda que soubesse que estava à apenas cinco minutos da livraria preferida. Na vitrine de uma joalheria viu a propaganda estampada com os dizeres: “para o dia mais especial de sua vida, nós temos as alianças perfeitas”. Um filme passou na cabeça dela: desde quando o conhecera até hoje, nesse exato momento. O dia em que sabia que uma escolha havia mudado tudo, em que disse não para alguém e, consequentemente, abriu caminho para quem hoje ela diria sim.
Perambulou pelas prateleiras cheias de lombadas coloridas e de diferentes tamanhos, passando os dedos por uma infinidade de livros, entre lançamentos, clássicos e best sellers. Essas eram as primeiras horas em que passava sozinha, totalmente absorta em pensamentos que não pareciam estar de acordo com o momento presente. Olhava para tudo e todos ao redor e não conseguia ver sentido no que acontecia. Tinha a impressão que havia se deixado levar pelo medo de errar novamente ou de desperdiçar a única chance de ser feliz. Encarava o fato de que desistir somente no dia do sim, parecia insano. Talvez estivesse se dando conta, mesmo que tardiamente, que havia criado uma persona, uma personagem que ela quis muito legitimar como aquela que teria enfim o desfecho de um “felizes para sempre”. E ela acreditou nisso por muito tempo. Mas agora parecia não fazer sentido, não ser ela de verdade.
A náusea que a percorreu do umbigo até a garganta agarrou o seu pescoço e deu as mãos à ansiedade que ela já conhecia bem. Como cancelar tudo e desistir? Conseguiria explicar que não era capaz de continuar com tudo isso? Repetia que sentir-se assim era natural, afinal de contas é um passo importante, uma mudança colossal, necessária. Será mesmo?
Lembrou que estava quase na hora do cabeleireiro e rumou pelas ruas tantas vezes percorridas em toda uma vida morando no mesmo lugar. Encontrou a mãe que já a esperava. Cabelo, maquiagem, unhas, fotos. Alguém, sabe-se lá porque, trouxe uma taça de vinho. Pra relaxar, falaram. E então a lembrança de uma noite, dez anos atrás, foi como mergulhar no buraco de Alice e ver tudo caindo e girando e acontecendo de forma rápida e desconexa. Risos, uma, duas e de repente três garrafas de vinho, mais risos, tropeços e uma queda em braços conhecidos. Um beijo. Tudo rodando. Como assim? “Não somos amigos?” “E daí?” Mais beijo e uma saída em disparada. Confusão. “Preciso pensar”. Se deu conta que pensar era a única coisa que não deveria ter feito. Sentir era a palavra. Mas o timing daquela noite estava errado, tudo fora da hora, de ordem. Tinha certeza que havia errado. Sentir fazia muito mais sentido.
Alguém lembrou que era preciso passar o fixador de maquiagem. E ela lembrou que nunca havia esquecido o que aconteceu com eles, que a escolha que fizera tinha mudado todo o rumo e direção de uma vida. No caso a sua, que aparentemente era tão perfeita. Talvez perfeita demais, linear demais, metódica demais. Por tanto tempo parecia que era exatamente isso que a faria feliz: a certeza, a segurança, a rotina. E agora tinha a nítida e quase que palpável sensação de que estava prestes a ser acorrentada a toda uma realidade e uma história que não queria, não desejava.
Sua mãe a acompanhava com o olhar, sem perder um movimento seu, mordendo o canto dos lábios e suspirando entre sorrisos amarelos: ela sabia que algo acontecia mas não entendia o que. Apesar dos sorrisos e do ar alegre, tudo parecia ser plastificado, caras e bocas estampadas apenas porque é assim que esperam que estejamos em determinados momentos. A melancolia pairava com o mesmo peso das gotículas de spray de cabelo que se dissipavam no ar, como uma nuvem cinza que, na ausência das lentes das câmeras e dos pedidos de “sorria” do fotógrafo, faziam com que seu maxilar se contraísse e seus vincos acima do nariz e da sobrancelha entregassem o que se passava em sua cabeça naquele exato momento. “E se eu estiver me precipitando? E se não for realmente isso que eu quero? Quantas vezes nesses anos todos tive a total certeza de que o amava e seria com ele que gostaria de passar o resto da vida?”
Em pé, parada na frente das portas da igreja, com o pai ao lado, foi tomada novamente por um sufocamento. Lutava com os pensamentos que tentavam justificar isso. Estava sempre se justificando, racionalizando e procurando caminhos mais fáceis, mesmo que mais desconfortáveis, para seguir.
Escutava o burburinho das pessoas, a música de fundo, o cheiro das flores inundava seus sentidos. A cerimonialista veio avisar que estava na hora. Seu pai a olhou com olhos marejados, porém firmes e carinhosos, como sempre. "Vamos?" Seu corpo não obedecia. Sentia como se os sapatos de cetim branco e escolhidos a dedo fossem na verdade dois blocos de concreto. "Não posso" sussurrou. "Não sei se quero" foi o que conseguiu dizer, antes de dar alguns passos para trás no momento em que as portas se abriram. Ela avistou os dois no altar, porque quis o destino que ele fosse o padrinho de casamento. Quando o Universo conspira ele pode ser imbatível, indecifrável e lindo; mas sádico também. Ele. Eles. Nós. Eu. Olhou a cauda do véu, dois metros de renda cobrindo as escadarias da catedral, como ondas brancas num mar de possibilidades e escolhas. Encontrou novamente os olhos do pai. Só isso já seria suficiente, mas ele falou, baixinho, ela tendo que praticamente ler nos lábios dele “vai, está tudo bem, te amo” para então dar meia volta e sair correndo em direção à rua. Em direção à ela mesma.