terça-feira, 14 de novembro de 2017

Pequenos Contos - A escolha

Eram duas da tarde. Faltavam exatamente sete horas para a cerimônia. Estava se dirigindo à uma livraria. Uma caminhada de cinco minutos até a loja. Um filme passou na sua cabeça. Desde quando o conhecera até hoje nesse exato momento. Desde o dia em que sabia que uma escolha havia mudado tudo. Desde o dia em que disse não para alguém. E consequentemente abriu caminho para quem hoje ela deveria dizer sim.
Perambulou pelos estandes de livros, lançamentos, clássicos, best sallers. Desde o início da semana eram as primeiras horas em que passava sozinha, totalmente absorta em seus pensamentos. Pensamentos estes que não pareciam estar de acordo com o momento presente. Olhava para tudo e todos ao redor e não conseguia ver sentido no que estava acontecendo. Tinha a impressão que havia se deixado levar pelo medo. Medo de errar novamente. Medo de estar desperdiçando a única chance que teria de ser feliz. Medo de encarar o fato de que desistir somente no dia do sim parecia insano. Talvez estivesse se dando conta, mesmo que tardiamente, que havia criado uma persona, um personagem que ela quis muito legitimar como aquela que teria enfim sucesso em um relacionamento. E ela acreditou nisso por muito tempo. Mas agora parecia não fazer sentido. Parecia não ser ela de verdade. Porque realmente não era.
Sentiu um frio na barriga misturado com uma ansiedade desmedida. Como cancelar tudo? Como desistir? Como explicar que não seria capaz de continuar com tudo isso? Disse a si mesma que era assim mesmo, afinal de contas é um passo importante, uma mudança colossal, necessária. Será mesmo?


Lembrou que estava quase na hora do cabeleireiro. Cabelo, maquiagem, unha, fotos. Alguém, sabe-se lá porque, trouxe uma taça de vinho. Pra relaxar, falaram. E então a lembrança de uma noite há mais de 10 anos foi como um soco no estômago. Risos, uma, duas e de repente três garrafas de vinho, mais risos, tropeços e uma queda em braços conhecidos. Um beijo. Tudo rodando. Como assim? Não somos amigos? E daí? Mais beijo e uma saída em disparada. Confusão. Preciso pensar. Se deu conta que pensar era a única coisa não devia ter feito. Sentir era a palavra. Mas o timing daquela noite estava errado. Estava tudo fora da hora, fora de ordem. Pensar parecia o melhor. Tinha certeza que havia errado. Sentir fazia muito mais sentido hoje.
Alguém lembrou que era preciso passar o fixador de maquiagem. E ela lembrou que nunca havia esquecido aquela noite, que a escolha que fizera naquela noite tinha mudado todo o rumo e toda a direção de uma vida. No caso a sua, que aparentemente era tão perfeita. Talvez perfeita demais, linear demais, metódica demais. Estava confusa. Por tanto tempo parecia que era exatamente isso que a faria feliz:  a certeza, a segurança, a rotina. E agora tinha a nítida e quase que palpável sensação de que estava prestes a ser acorrentada a toda uma realidade e uma história que não queria para ela mesma.


Sua mãe a olhava com um misto de alegria e de preocupação, mas a alegria parecia ser plastificada, daquelas que temos apenas porque é assim que esperam que estejamos em determinados momentos. A preocupação inerente a qualquer mãe que ao olhar nos olhos da filha, conseguia fazer a leitura da insegurança e da angústia reluzindo por trás de toda a maquiagem e o frenesi que invadia a sala com o fotógrafo e o maquiador dando os últimos retoques na noiva que ela com certeza achava ser a mais linda de todas. E nem por isso deixava de ser a mais melancólica. Uma melancolia a havia inundado por inteiro, como uma nuvem cinza que na ausência das lentes das câmeras e dos pedidos de “sorria” do fotógrafo, faziam com que seu maxilar se contraísse e seus vincos acima do nariz e da sobrancelha entregassem o que se passava em sua cabeça naquele exato momento. “E se eu estiver me precipitando? E se não for realmente isso que eu quero? Quantas vezes nesses anos todos tive a total certeza de que o amava e seria com ele que gostaria de passar boa parte da vida?” 

Em pé, parada na frente das portas da igreja, com seu pai ao seu lado, sentiu de novo a sensação de sufocamento. Mais uma vez atribuiu ao fato de estar prestes a viver um momento importante, e por isso mesmo a ansiedade e os sentimentos dúbios se justificavam. Estava sempre se justificando, racionalizando e procurando caminhos mais fáceis, mesmo que mais desconfortáveis, para seguir.
Escutava o borburinho das pessoas, a música de fundo, o cheiro das flores inundava seus sentidos. A cerimonialista veio avisar que estava na hora. Seu pai a olhou com olhos marejados, porém firmes e carinhosos, como sempre. "Vamos?" Seu corpo não obedecia. Paralisada, era como estava. "Não posso" sussurrou. "Não sei se quero" foi o que conseguiu dizer, antes de dar alguns passos para trás e sair correndo em direção à rua. Em direção à ela mesma. 

Nenhum comentário:

Mosaico

 A ideia de mosaico me agrada Cacos e pedaços do que um dia já foi inteiro Formando uma nova versão daquilo que um dia foi quebrado Mas aind...